quinta-feira, 29 de julho de 2010

Destruição de documentos

Tramita no Congresso Nacional um projeto de Código do Processo Civil (Projeto de Lei nº 166) que, se aprovado sem modificação (do artigo 967, especificamente), permitirá a queima de centenas de milhares de processos. Além de grave agressão à História, a proposta também fere direitos constitucionais de acesso à informação e de produção de prova jurídica.
Os historiadores estão se mobilizando para modificar esta proposta e você pode se engajar nesta causa. Pra começar: no site da Anpuh Nacional há textos informativos e um abaixo-assinado.

http://www.anpuh.org/site/capa 

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Herança Cultural como processo colectivo

Texto da Profa. profa. Dra. Margarida Maria Pereira dos Santos Louro de Felgueiras, docente da Universidade do Porto, apresentado no debate do dia 24/05 na FEUSP, em encontro com representantes de Pontos de Cultura e escolas públicas paulista.

Herança cultural como processo colectivo

Margarida Louro Felgueiras, Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Universidade do Porto.

1. Introdução

Quero agradecer publicamente o estar aqui novamente na FE USP onde tenho sido sempre tão amigavelmente recebia e a colaborar com o Centro de Memória e com o projecto Educação e Cultura traçados ponto a ponto. Dou os meus parabéns por este importante projecto e pela designação tão bonita e tão significativa para a construção cultural. De facto a educação como a cultura são traçadas por pequenos gestos quotidianos, que no seu conjunto formam o nosso meio cultural. Ao Centro de Memória, a todas as Professoras e a todos/as os/as colaboradores o meu obrigada por estar hoje convosco aqui.
Pediram-me que falasse sobre herança cultural. Não estou certa de poder corresponder às expectativas mas vou tentar, organizando a minha fala pelos seguintes tópicos:

1. Precisando conceitos de:
- cultura
- património e a questão do valor
- herança cultural como legado material e imaterial

2. Pensar os processos sócio-culturais e educativos em termos de herança cultural
a)- herança conjunto de possibilidades .
b)- herança como o traçado de limites

3.O processo de escolarização como um exemplo de campo gerador de herança cultural e de património educativos

2. Os conceitos e seu significado

2.1. A cultura
O conceito de cultura remonta à época romana e referia-se ao cultivo dos campos. Só muito tardiamente se transformou em cultivo do espírito. O Dicionário Prosódico de Portugal e Brazil, do escritor português João de Deus, edições de 1877 e de 1907, remete a definição de cultura para a realidade agrícola e define-a, no campo do espírito, como “tratar com frequência as letras, as relações de alguém; dar-se com assiduidade ao estudo, ao trato”. Ou seja, a cultura incluia a ideia de civilidade, das boas maneiras do trato social, e guardava ainda o traço de uma acção, de dar-se ao estudo ou tratar as letras.
Na tradição francesa o termo traduz o que de melhor uma época produziu no campo das letras e das artes. A cultura seria composta pelas realizações mais elaboradas do direito, da filosofia, da moral, da literatura, da música e da religião. Ou seja, refere-se sobretudo a formas de pensamento, ao mundo imaterial das ideias, expresso em formas e criações de grande beleza e perfeição. Entra em concorrência com outro conceito, do século XVIII, o de civilização. Com este procurava-se dar conta das realizações técnicas, do Progresso, da riqueza material, que incorpora as ideias mas lhe dá uma tradução concreta, objectivada e observável em técnicas, modos de vida, níveis de consumo, realizações de todo o tipo. O conceito de civilização permitia a mensurabilidade, a distinção entre sociedades e, no seio destas, entre os diferentes grupos que a compõem. Aplicava-se mal às sociedades ditas “primitivas”, cujo desenvolvimento não incluía a noção de cidade ou de um aparato tecnológico elaborado. Daí o surgir da noção de cultura material, termo cunhado por arqueólogos, pré-historiadores e mais tarde historiadores da Nova História, que a definem como “conjunto de resultados materiais, fruto de acções distintas inspiradas por uma mesma tradição” .
No século XX assistiu-se ao esbater da dicotomia entre estes termos, com a historiografia francesa a marcar o compromisso com Histoire, Cultures et Civilizations. Mas fá-lo mantendo uma diferenciação entre duas realidades, que o discurso comum utilizava como barómetros nos contactos entre povos.
A Cultura como sistema de normas e valores e como conjunto de obras-primas de uma época ou sociedade vai ocupar assim um lugar de destaque na narrativa histórica, articulada com os processos sociais, económicos e políticos, que a explicariam. Reconhece também a variedade das culturas e a necessidade de as (re)conhecer, nas suas especificidades sócio-históricas. Nesta concepção de cultura o sistema educativo não tinha densidade nem era reconhecido. Por sua vez, Civilização vai transformar-se numa designação ampla, que passa a nomear grandes conjuntos culturais de geografia variável, diversos mas exibindo alguns traços culturais comuns. Passou lentamente do debate da cultura para o domínio da geo-política. Nesse sentido se entende a expressão civilização ocidental em contraponto com uma civilização árabe ou outra oriental.
Surgiu então um novo conceito, não menos problemático, ‘mentalidades’, que pretendia dar conta das representações, dos estereótipos e das mundividências de uma época ou sociedade, que incluiria em algum grau a referência a hábitus e produções culturais.
No final do século XX, fez-se sentir uma valorização dos actores e suas experiências, muito ligada à sensibilidade do vivido e a uma visão diferencial da cultura, identificando as suas manifestações segundo o género, a idade, os estratos sociais.
Em toda esta deriva à procura de conceitos compreensivos das formas de vida, a focagem fez-se mais pelo “espiritual”, para usar um termo antigo e fora de moda. Mas o projecto contemporâneo de cultura, oriundo da antropologia, como “todo o complexo que compreende o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” foi-se afirmando . A cultura passou a ser pensada neste registo. Mas o debate em torno da linguística, da significação fez emergir o discurso como realidade discursiva ou seja , simultaneamente como texto e como cenário, criando realidades mais próximas do virtual do que do vivido.
E contudo, a ligação ao real vivido parece ter-se fortalecido com o estudo do quotidiano , na atenção dada á significação dos actores e do observador, que formam um todo, numa interacção de significações concorrentes mas internas a um mesmo espaço ou campo de acção.
A expansão do conceito de cultura a que hoje assistimos é tributária desta forma antropológica de definir a cultura, que aplica o conceito um pouco a tudo: cultura escolar mas também cultura de empresa, cultura política, cultura de pares, cultura popular, culturas marginais, de pobreza, de morte… A lista é vasta.
A migração do termo cultura para contextos tão diversos dilatou de tal modo o seu significado, que se apresenta hoje mais como um instrumento de manipulação, com vista a obter a adesão dos indivíduos do que um conceito capaz de designar de forma precisa uma dada realidade. Nesta migração o conceito conservou o seu traço de acção. A cultura designava o procedimento, mais do que a qualidade, de arrancar do campo (material ou espiritual) um bem necessário. Na asserção comum, a cultura passou a designar mais a qualidade - o traço que permite fazer a distinção entre grupos sociais. A cultura do espírito, que implicava tempo para a frequência das letras, para a assiduidade ao estudo, em suma para a aprendizagem, passou a designar sobretudo um ornato, que distinguia, hierarquizava e excluía outras formas de cultura. Raramente se refere a “cultura” como termo universal. Há a necessidade de juntar-lhe uma qualificação, de lhe atribuir um campo, de a especificar a sujeitos determinados – a cultura popular, operária, associativa, camponesa, juvenil, a cultura light…- o que opera distinções sucessivas do conceito. Esta variedade de culturas ou grupos culturais indica uma segmentação, uma perda de universalidade mas, simultaneamente, supõe em si mesmo a existência de uma unidade, de um fundo comum como atributo humano geral, emergente da sociedade humana, ainda que cada vez mais implícito e difícil de delimitar. Nas palavras de Morin , a cultura é simultaneamente um capital cognitivo, técnico, mitológico e ritual, de memória, de organização, servido por uma linguagem e gravado na memória dos indivíduos, em primeiro lugar, e depois escrito. É este património cultural herdado “que permite a regeneração permanente da complexidade social”. Possui uma linguagem própria e muito mais diversificada que o património genético, o “que faculta a rememoração, a comunicação, a transmissão de indivíduo para indivíduo e de geração para geração”.

2.2. O património e a questão do valor

O termo “património” tem significado principalmente o conjunto de bens privados, transmitido de pais para filhos, de geração em geração. Segundo Babelon e Chastel (1994, p.49), a inscrição, no conceito de património, do sentido de propriedade comum é uma generalização do uso primeiro do termo e nasceu da consciência de uma colectividade. Os autores salientam que a herança podia conter bens comerciáveis, que constituíam a fortuna, e bens que de algum modo representavam a pessoa, eram inegociáveis e deviam permanecer na família. Tomando ainda como base a definição de Babelon e Chastel (p.58), este duplo significado está presente no conceito actual de património: um bem que pode ter maior ou menor valor de mercado, mas que é considerado fundamental, inalienável tanto pelos valores que se lhe atribuem e o explicam, como pelo sentimento de um laço comum, de uma riqueza moral. Se no passado este sentimento se referia predominantemente à nação, hoje parece ser indispensável ao reforço de grupos profissionais, das comunidades locais, regionais, supranacionais ou da Humanidade (UNESCO, 1972 ) . Por isso temos necessidade de falar de um património mundial e de conservar conjuntos considerados de valor universal. Perante o crescimento sem precedentes da chamada era “pós industrial” e da destruição, que desencadeia, uma nova preocupação de carácter etnológico veio chamar a atenção para os procedimentos da vida simples, do quotidiano, das tradições populares, dos espaços, enriquecendo a consciência de um bem comum. O património é visto inserido num espaço de vida, organizado e edificado, povoado por conjuntos de objectos portadores de formas, imagens, significados e valores. Património que é “resignificado” primeiramente pelas comunidades que o herdam e pode e deve ser partilhado por grupos mais vastos e afastados, como contributo para a formação de um imaginário comum, que poderá ser fortalecido por laços afectivos.

2.3. Herança cultural como legado material e imaterial

Por herança cultural entendemos o legado de bens materiais quanto simbólicos, as práticas, as tácticas, as brincadeiras e as canções, as recordações construídas em um espaço relacional, num quadro físico e social estruturado. Contém um sentido afectivo, um valor deixado em formas de ver, de pensar, de actuar. Algo que não podemos alienar, sem nos transformarmos nessa mudança. Implica a cultura material articulada com uma visão etnológica do social, em que o artefacto é portador de intenções, valorizações e saberes.
Na sua actividade os indivíduos relacionam-se com um mundo que lhes pré-existe, constituído por objectos tanto físicos como ideais. Mundo transformado por gerações sucessivas, que é submetido a um processo de apropriação singular, que se inscreve na história de cada pessoa. Ao mesmo tempo essas acções têm um conteúdo concreto, objectivo, apropriado às significações e inscritas nas relações sociais. São essas acções de gerações, que constituem toda uma herança cultural simultaneamente material e imaterial, que nos é legada de formas diversas e que não podemos alienar.
Se o património acentua o valor de mercadoria a herança sublinha os afectos que unem as pessoas aos objectos, às memórias, aos gestos, aos espaços e vida, às formas de ver o mundo. Por esse motivo preferimos falar em Herança Cultural.
Falar de herança cultural assume hoje a dupla referência a culturas locais e a cultura global. O mundo aparece-nos, mercê dos meios técnicos de informação, de transporte com um grau de proximidade que o torna um espaço único, comprimido, onde damos conta e nos familiarizamos com uma enorme diversidade de culturas. Este reconhecimento do planeta como uma aldeia, leva-nos ao reconhecimento de espaços naturais e sociais a serem preservados como herança da Humanidade. É o caso do reconhecimento pela UNESCO do conjunto urbano da cidade do Porto, da zona vinícola do Alto Douro (produtora do vinho do Porto) ou da siderurgia de Volkingen como patrimónios da humanidade. Sendo uma classificação que indicia a apresentação dos locais como “universais”, simultaneamente reconhece neles o carácter específico de “local”. Este exemplo coloca-nos perante o paradoxo dos tempos actuais, ditos pós-modernos e de globalização, onde se processam ao mesmo tempo, fenómenos de localização e afirmação de culturas locais. A globalização que procede à homogeneização de consumos, comportamentos, organização de espaços e desenvolvimento de “terceiras culturas” , traz em si a quebra de um sentido único e hierarquizado de cultura e a procura de um “sentido do lugar” . Torna-se então indispensável clarificar o conceito de cultura local, já que trabalhamos com a transmissão da herança cultural (local-nacional; europeia e global).
Segundo Featherstone (1997), a cultura local refere-se geralmente a fenómenos particulares, circunscritos a um espaço limitado e povoado por relações interpessoais densas. Na cultura local enfatiza-se o conhecimento do meio físico, os hábitos e rotinas quotidianas, com rituais, símbolos e cerimónias que reforçam os elos entre pessoas e criam um sentimento comum face ao passado. São essas experiências vividas em comum que ficam sedimentadas nos espaços, edifícios e relações entre pessoas que criam o sentimento de pertença e o “sentido de lugar”. A cultura local é deste modo um conceito relacional que estabelece fronteiras comunitárias de identidade e de exclusão dos que lhe são exteriores. No quadro da globalização económica e de informação há uma necessidade mais premente de inteligibilidade, tanto mais que os fluxos das indústrias culturais globais tendem a destruir a memória colectiva e o “sentido do local”, criando um sentimento de desenraizamento.
A noção histórica de passado constrói-se sobretudo através de práticas comemorativas e ritualistas, desde as festas familiares às celebrações comunitárias mais alargadas. São estas práticas que alimentam as relações emocionais entre pessoas e promovem sedimentações simbólicas de gestos, sons, imagens, cheiros, nos espaços colectivos, nos edifícios, investidos de afectividade. Sem estas sedimentações simbólicas e afectivas não há “capital cultural reconhecível”. Daí a importância da recriação e celebração de tradições, identificação de formas de vida do passado na construção de um sentido de localidade e de identidades plurais. São disso exemplo, segundo Featherstone (1997)
“Os parque temáticos, alguns museus contemporâneos e toda a indústria relacionada com o património contribuem para produzir uma sensação de bem-estar que nos transporta a um passado vivido sob a forma de ficção”.
Estas formas actuais de preservação “onde o real se confunde com a simulação” permite aos mais idosos reforçar um “sentido de lugar” já perdido e aos mais jovens recriar realisticamente aspectos culturais do passado.

3. Pensar os processos sócio-culturais e educativos em termos de herança cultural implica a consideração da herança como conjunto de possibilidades. O conhecimento do realizado permite avaliar, distanciar, traçar rumos, ter informação como apoio à decisão, com valor cultural de futuro. O que possibilita a criação de memórias com projectos de futuro. Ou, de outra forma, instaurar a tradição do futuro. Já não se trata do futuro da tradição, mas qual a tradição em que queremos instaurar o futuro. É nesse sentido que é extremamente importante, quer ao nível da herança educativa quer ao nível do trabalho dos Pontos de Cultura organizar a memória do trabalho que se vai realizando. Isto se queremos de facto inscrever as nossas práticas na tradição e um novo futuro. É disto exemplo, em Portugal, o trabalho da equipa e Boaventura Sousa Santos, que levou à criação de um centro e memória sobre a Revolução do 25 de Abril em Coimbra. É necessário instaurar a tradição do novo para que possa existir como futuro. E isso faz-se através dos rituais comemorativos, pela narrativa da historicidade, pelo criação de locais de guarda, estudo, divulgação – e arquivos, museus, centros e documentação.
A herança como o traçado de limites, definidos pelo pensado e agido e que traçam o pensável de cada sociedade. Os limites traçam o campo do pensável, criam habitus, mostram impactos de acções e omissões. Assim podemos afirmar que o passado nos pesa, impondo limitações ao que se pode pensar, experimentar, fazer. A herança traduz um universo de experiências, que nos permite pensar e a que podemos recorrer. Se tivermos tido o cuidado de preservar.

24 de Maio de 2010
Centro de Memória da Educação da USP, São Paulo